sábado, 28 de dezembro de 2013

Elliot Krane: O mistério da dor crônica

Nós pensamos na dor como um sintoma, mas há casos em que o sistema nervoso desenvolve uma realimentação e a dor se torna uma terrível doença em si mesmo. A partir da história de uma garota cuja torção do pulso se tornou um pesadelo, Elliot Krane fala sobre o complexo mistério da dor crônica, e revisa os fatos que estamos aprendendo sobre seu funcionamento e como tratá-la.






Fonte: http://www.semiologiaortopedica.com.br/2012/03/elliot-krane-o-misterio-da-dor-cronica.html

Pacientes com dor crônica – O que eles têm em comum?

A dor acompanha a história da humanidade, é uma marca do que significa ser humano. 
Todo mundo já sentiu algum tipo de dor, mas nenhum de nós sabe quando chegará ou por quanto tempo nos acompanhará. Em geral, a dor cede. Mas e a dor que persiste?
Normalmente, a dor é protetora: um sistema instalado para alertar o corpo de que algo não vai bem. Quando o tecido sara, a dor some. Entretanto, quando ela persiste muito tempo depois de cumprida a sua função, se transforma na patologia da dor crônica – uma dor que só piora com o tempo.
A sensação do corpo como fonte de prazer muda para a sensação do corpo como fonte de dor. A pessoa se sente perseguida. A dor crônica é um fantasma do nosso tempo: uma doença grave, - doença dor crônica mal entendida e mal diagnosticada.
O Dr. Elliot Krane, anestesiologista pediátrico dos EUA, proferiu em 2011 uma conferência dizendo que em 10% das condições tumorais, inflamatórias, infecciosas e pós-operatórias a dor persiste por meses ou anos transformando-se na própria doença.
Nós pensamos na dor como um sintoma, mas há casos em que o sistema nervoso desenvolve uma realimentação e a dor se torna uma terrível doença em si mesmo.
De acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), uma em cada cinco pessoas sofre de dor crônica, o que afeta radicalmente a rotina e a qualidade de vida do indivíduo.
Veja também a classificação da dor crônica – 2ª edição da International Association for the Study of Pain.
A medicina clínica nos ensina que pacientes mesmo aqueles com problemas médicos semelhantes, variam amplamente em sua resposta à doença e muitas vezes necessitam de tratamento diversificado.
Não obstante essa experiência clínica, que reforça a crença na “diferença entre os indivíduos”, ficamos impressionados com as semelhanças que existem entre os pacientes de dor crônica.
Uma observação mais detida e um estudo dessas semelhanças nos conduzem a uma fórmula básica comum na avaliação dos pacientes de dor crônica: eles se apresentam como caricaturas de pacientes agudos, com as preocupações, comportamentos e urgência de atendimento que seriam apropriados ao pacientes agudo.
A confusão entre pacientes crônicos e agudos, tanto por parte do paciente como do médico, provoca frustração e desapontamento em quem trata desses pacientes. No entanto, na avaliação clínica de mais de 300 pacientes de dor crônica, observamos alguns dados comuns:
- Todos, por exemplo, tinham dor com meses e anos de duração.
- A maioria indicou que sua dor atual era parecida com a que se manifestara no início da doença, que geralmente estava associada a algum problema médico agudo ou ainda a algum acidente, mas que piorou depois de várias tentativas frustradas de tratamento médico ou cirúrgico.
- Todos forneciam uma história médica detalhada das falhas de tratamento, muitas vezes com grande satisfação.
- Todos já haviam tentado muitos medicamentos, e a maioria era dependente de narcóticos. Continuavam a tomar seus analgésicos e tranquilizantes, apesar de eles mesmos afirmarem que a medicação não produzia alívio em longo prazo, comentando que continuavam a tomá-la apenas “para amortecer a dor”.

  • Opióide (narcótico) 
  • Não-opióide (não-narcótico)
  • Acetaminofen (Tylenol®) 
  • Anti-inflamatório não esteróide (AINES)
  • Anti-inflamatório esteroidal
  • Antiepiléptico (anticonvulsivante)
  • Antidepressivo e ansiolítico 
  • Relaxante muscular (antiespasmódicos)
  • Hipnóticos (relaxantes do sono)
  • Anticonvulsivantes (gabapentina)
  • Agentes tópicos
- Todos apresentavam seu problema de dor como urgente ou até como casos de emergência.
Descreviam a dor como insuportável e incapacitante.
- Eles concordavam, em sua maioria, a se submeter a qualquer tratamento capaz de tirar-lhes a dor, acreditando que esta tinha uma causa orgânica até então desconhecida.
- Finalmente, muitos afirmavam não ter nenhum outro problema e que estaria tudo bem se o doutor tratasse sua dor. Se indagados a respeito de uma possível depressão ou problema pessoal, familiar ou outros, colocavam-se na defensiva, admitindo, no máximo, que esses outros problemas seriam consequentes à dor.
As atividades diárias desses pacientes estavam organizadas em torno da dor e definidas por ela. A dor explica todas as dificuldades na vida do paciente.
O exame físico e novo questionamento geralmente levam o examinador à conclusão de que a narrativa da dor é exagerada em face dos achados do exame, mostrando assim que os fatores emocionais contribuem consideravelmente na percepção da dor.
A presença desses dados nas histórias de tantos pacientes nos permite traçar um perfil do paciente de dor crônica, no qual predominam os seguintes traços:
- Presença de um tipo de dor para o qual o tratamento médico é incapaz de oferecer uma razoável esperança de cura.
- Falta de alívio por medicamentos e frequente depressão, dependência medicamentosa, diminuição na capacidade de funcionar normalmente como consequência do excesso de medicação.
- Incapacidade física acima da que seria de esperar pelo exame físico.
- Contribuição de fatores psicológicos e sociais que reforçam e perpetuam o comportamento doloroso. Os portadores de Ler/Dort estão expostos aos fatores de risco biológicos e aos fatores de risco psicossociais para as condições neuromusculoesqueléticas com dor crônica que os afetam no mundo do trabalho.
- Supervalorização da dor, ou seja, a dor representa o papel central nas suas relações consigo mesmo e com os outros.
- Manipulação bem sucedida de outras pessoas, como sua história revela, muitas vezes induzindo o médico a tentar intervenções terapêuticas, ou até mesmo cirúrgicas, sem indicação precisa.
- Presença frequente de outra doença, não relacionada com a dor, mas que pode estar perdida entre as queixas do paciente, concentradas na dor.
A história e sua apresentação são impregnadas de um sentido de urgência, reafirmação de angústia, sofrimento e incapacidade, além da esperança de que finalmente será especificada uma doença, a fim de ser instituído um tratamento definitivo.
Embora esse comportamento e essa esperança sejam compreensíveis em pacientes com doença aguda ou traumatismo, eles não são apropriados num problema que é obviamente crônico.
Essa incongruência entre expectativas e possível resultado real mostra claramente que o primeiro passo no tratamento construtivo desses pacientes deve ser o de retirar deles a expectativa arraigada do tratamento condicionado a cura, com o na experiência da doença aguda. O próprio paciente não é o único responsável por suas esperanças irreais.
O treinamento e a orientação terapêutica da maioria dos médicos, acostumados a ver doentes agudos, reforçam sua esperança de cura e, no caso da maioria dos doentes de dor crônica, sancionam seu papel de doentes crônicos. Acreditamos que não se pode conseguir sucesso no controle da dor crônica enquanto o paciente e o médico que o trata não chegarem a um acordo e trocarem a meta de alívio da dor pela de reabilitação.
Afirmamos que esses perfis de pacientes são um epifenômeno da assunção de uma doença aguda em bases crônicas. A dispensa temporária de responsabilidades, com regressão e dependência consequentes, pode ajudar o paciente a aceitar as recomendações de seu médico. No entanto, a ocupação prolongada da função de doente (e devemos lembrar que muitos de nossos pacientes já representam esse papel há anos) produz uma distorção da função “normal” do doente.
Se observarmos o comportamento do paciente de dor crônica à luz do que é esperado do paciente com doença aguda, torna-se óbvia uma série de distorções:

A. O paciente com doença aguda deve procurar auxílio médico.
Uma longa história de contatos médicos repetidos e as falhas da terapia relatadas pelo paciente de dor crônica são uma consequência da sua obrigação de, como todo doente, procurar auxílio médico. A expectativa social implícita é a de que, uma vez tenha encontrado auxílio médico, o paciente ficará curado.
Se não se cura, o paciente de dor crônica continua a procurar auxílio médico, até que sua própria busca se torne sua maior preocupação. A recomendação do paciente de um médico para outro é interpretada como uma forma de rejeição. Sob o ponto de vista do paciente, o médico que o envia a outro não está cumprindo com sua obrigação profissional.
Um caso ilustrativo de como o ato de procurar auxílio se tornou mais importante do que o acidente inicial é o de um paciente cuja dor se iniciou com uma pequena intervenção para uma lesão do tornozelo. A operação não produziu os resultados esperados, e assim foi realizada uma segunda. Muitas outras se seguiram, em pouco tempo, levando a uma incapacidade total, dependência de narcóticos e regressão acentuada. Somente 15 anos depois é que o paciente, ao ser enviado para uma avaliação especializada, foi finalmente rotulado portador de dor crônica, na verdade portador de “doença dor crônica.”
A família do paciente muitas vezes participa ativamente nessa busca. O comportamento do paciente e de sua família está perfeitamente ajustado para o que se espera de um indivíduo com doença aguda. É compreensível, assim, seu desapontamento pela não realização de suas esperanças dentro do padrão de referência da doença aguda. A razão dessa frustração (tanto do médico como do paciente) é um erro na identificação do problema, considerado como agudo.

B. Espera-se do paciente que coopere com o médico.
O paciente de dor crônica geralmente se propõe a, voluntariamente, fazer qualquer coisa que o médico sugira que possa aliviar sua dor. Essa atitude reflete um entendimento implícito de que, se o paciente “faz a sua parte”, isto é, coopera com o médico, este também conseguirá “fazer a sua” e curar a dor. Nos doentes de dor crônica essa cooperação leva muitas vezes a um abuso de drogas e à polifarmácia.
Os pacientes ignoram a hepatite medicamentosa entre outras possíveis intercorrências.
Num estudo comparativo de pacientes de dor crônica submetidos a múltiplas cirurgias com um grupo-controle de pacientes psiquiátricos, verificou-se que os pacientes de dor crônica estavam recebendo quatro vezes mais medicamentos, especialmente narcóticos, analgésicos e tranquilizantes menores. E, mais importante ainda, o estudo mostrou que, de acordo com os pacientes, a medicação não estava sendo muito eficaz.
Perguntados por que insistiam em tomar medicamentos cuja ação não era satisfatória, a maioria dos pacientes de dor crônica respondeu: “É porque o meu médico me mandou tomar”, ou então “Tenho de tomar alguma coisa para a dor”. O simples ato de tomar um remédio era mais significativo por conferir ao paciente o status de “doente” e de “necessita de tratamento” do que como medida paliativa.

C. Espera-se do paciente que deseje se curar.
Apesar da evidente regressão, da incapacidade exagerada e do uso excessivo de drogas, o paciente de dor crônica insiste que quer voltar a trabalhar e reassumir suas responsabilidades. Essas esperanças são comumente expressas na seguinte forma: “Assim que o doutor me curar, deixando-me igual ao que eu era antes de tudo isso acontecer, estarei pronto a reiniciar de onde parei.”
Esse tipo de afirmativa serve para negar qualquer outro problema que possa bloquear a volta ao trabalho e a reaceitação de responsabilidades. Nega também a possibilidade de que o paciente não consiga voltar à sua forma anterior ou readquirir o uso da parte afetada pela dor. O paciente continua a conceituar o problema como doença aguda, que necessita apenas ser identificada para que ele possa ser “curado” e voltar a ser o que era. Essa imagem do que era, muitas vezes, refere-se a 10, 15 ou 20 anos antes.
Também a família compartilha das esperanças do paciente por uma cura completa, bem como na procura do médico capaz de consegui-la. Grande parte das frustrações dos que cuidam do paciente crônico vem exatamente dessa esperança de eventual tratamento definitivo.

D. É privilégio do doente ver-se livre de responsabilidades sociais.
A pessoa declarada doente por um médico é aliviada de suas responsabilidades como esposo(a), progenitor(a), e de obtenção da renda familiar, passando a ser atendida pelos demais. Não é de se surpreender, quando essa isenção é prolongada, que o paciente se torne cada vez menos capaz de reassumir suas responsabilidades anteriores. 
A inatividade e o uso excessivo de drogas levam a uma deterioração de seu estado geral, que, juntamente com o fato de ser alvo de cuidados e aliviado de responsabilidades, intensifica ainda mais a regressão. Em pouco tempo, pode se tornar incapaz de resolver até mesmo os problemas do dia-a-dia.
O papel de doente é a única sanção aceitável socialmente para uma volta à infância. Sanciona a permissão de fugir às responsabilidades, de receber atenção e desfrutar de outras recompensas por estar doente – é o que se denomina ganho secundário, e representa uma variável importante na recuperação do paciente ou na falha da recuperação. Achamos, ainda, que muitos pacientes se adaptam muito rapidamente à função de “doente” porque estão mal preparados para assumir suas responsabilidades como adulto.  Quando a doença resolve uma situação conflitiva do paciente e sua inabilidade de assumir responsabilidades adultas, sancionando sua isenção, isto representa um ganho primário.
Podem existir outros incentivos externos para a não recuperação, como por exemplo uma aposentadoria precoce, uma licença prolongada, uma compensação por danos sofridos, muitas vezes à espera de decisão judicial, que devem ser evidenciados quando da avaliação do paciente. Temos visto pacientes particularmente relutantes em cooperar com os esforços para sua reabilitação quando uma ação pendente ou a aposentadoria requerida poderiam ser prejudicadas pela sua melhora.

E. O doente tem necessidade de receber cuidados.
O direito de receber cuidados e se tornar mais infantil são um privilégio da função de doente agudo. Como ganho secundário e contribuindo para uma maior incapacidade física, a regressão, entretanto, é contraproducente no paciente de doença crônica.
Quando alguém recebe o diagnóstico de doente, seus familiares são designados como curadores e dividem as responsabilidades anteriores do doente. A evolução dos curadores a partir dos membros da família muitas vezes segue um caminho comum. Primeiro a família fica preocupada e desarmada, e sacrifica conscientemente a rotina normal para confortar e aliviar o paciente.
Quando, porém, o papel do doente é prolongado, os familiares se frustram e se ressentem do longo sacrifício, ou então desenvolvem um ajustamento mais confortável, no qual o paciente é tratado como criança.
O cônjuge do paciente com dor crônica insiste em estar presente durante todos os exames, muitas vezes fala em lugar do paciente, e de todo o modo se comporta como progenitor de uma criança pequena. Os pacientes podem apresentar uma regressão tão completa, a ponto de se tornarem inteiramente dependentes do cônjuge, agindo como crianças nas mais simples tarefas. O trabalho com os familiares, a fim de desencorajar esse comportamento regressivo e reforçar o comportamento para uma reabilitação, é uma das intervenções terapêuticas mais importantes nesses casos. Também a regressão psicológica é um fator importante na incapacidade do paciente de dor crônica.
A regressão é uma resposta esperada na doença aguda. Em pacientes comuns, esse retorno a um estado infantil manifesta-se geralmente por um aumento do egocentrismo, uma diminuição do quadro de interesses, preocupação com as sensações do corpo, aumento notável da dependência de outras pessoas e muitas vezes uma manipulação constante e insistente para conseguir atenção.
Apesar de esse comportamento facilitar o cumprimento das ordens médicas no estado de doença aguda, a regressão exagerada e prolongada dificulta seriamente a capacidade de se adaptar a processos crônicos e o retorno a um funcionamento sócia normal.
Há muito já se sabe que o ambiente hospitalar favorece a regressão por meio do reforço da passividade, da incerteza do significado do diagnóstico médico para o paciente e da promessa implícita de que, se ele se comportar bem, suas necessidades mais primitivas serão satisfeitas. O paciente é incapaz de reassumir seu papel na reabilitação e independência enquanto está deitado no leito com uma enfermeira tomando conta dele. Muitas das características indesejáveis do paciente de dor crônica podem ser entendidas, se considerarmos que ele apenas atua dentro da estrutura dessas expectativas.
 A hospitalização repetida apenas vem reforçar essas características. A nosso ver, as avaliações psicológicas, especialmente testes aplicados como métodos diagnósticos, têm valor muito limitado no paciente crônico, por causa dessa regressão. Por exemplo, os investigadores que utilizaram o MMPI (Minnesota Multiphasic Personality Inventory) na avaliação da neurose desses pacientes não conseguiram demonstrar nenhuma diferença evidente entre o doente com dor de origem psicológica e o doente com dor de origem orgânica, nem prever a resposta a um ato cirúrgico.
Os sintomas de regressão percebidos na avaliação psicológica ou traduzidos por uma neurose elevada no teste do MMPI frequentemente levam a um diagnóstico errôneo de hipocondria, depressão ou alteração da personalidade.
Provavelmente os sintomas e alterações do MMPI representam apenas maior ou menor grau de regressão ao comportamento próprio do paciente crônico.
Assim, as histórias e a representação de pacientes de dor crônica são notavelmente parecidas e representam apenas uma busca obstinada por tratamento definitivo de uma dor sem cura.
Em presença de grau mais ou menos avançado de regressão, colocamos em dúvida o valor dos testes psicológicos usuais como métodos de diagnóstico ou prognóstico. Se por intermédio de estratégias várias conseguimos remover os pacientes de sua posição regredida, é possível chegar a conclusões diagnósticas ou prognósticas mais apuradas. Em nossa experiência, a severidade de um problema de dor crônica (e, portanto, da dificuldade de recuperação) varia de modo contínuo e dependente basicamente da maior ou menor necessidade que o paciente tem de permanecer doente.